A Difícil Arte de Ser Adepto em Portugal (1ª Parte)
O adepto não é apenas o destino final do produto. É o motor do seu valor. O papel do adepto, dentro desta mudança de cultura, é ser o intérprete, garante, executor e avaliador dessas mudanças, bem como o medidor da qualidade do espetáculo, da relação, das ofertas e das mensagens prestadas.
Introdução
No primeiro artigo desta (esperamos, longa) série de artigos de opinião, propus-me a trazer para a discussão e partilha entre todos os que direta e indiretamente estamos ligados à indústria do futebol, uma análise puramente factual, estratégica e, em base desses elementos, trazer possíveis caminhos para contribuir para o crescimento da indústria de forma global (não há respostas únicas e ninguém vai trazer a “solução mágica”).
Propus-me também, em base da minha experiência profissional do meu background, começar a desenvolver um conjunto de vias estratégicas que, sendo bem implementadas pelos atores e responsáveis do nosso futebol, certamente irão trazer resultados positivos e sustentáveis. E é mesmo isso que vamos tratar!
Ser Adepto (com letra maiúscula) de futebol em Portugal continua a ser, muitas vezes, um exercício de resistência. Resistência à má experiência global, desconforto, aos horários, às condições dos estádios, ao ambiente, às narrativas tóxicas e, acima de tudo, à falta de evolução de um “produto” que continua pouco competitivo, pouco personalizado e pouco orientado ao consumidor.
Mas por trás de tudo isto existe um problema ainda mais profundo:
- não existe, em Portugal, uma verdadeira estratégia de experiência do adepto;
- não existe um ecossistema digital integrado;
- não existem dados suficientes para tomar decisões inteligentes;
- e a cultura da indústria ainda não evoluiu para um modelo orientado ao cliente.
O resultado é simples: apesar da paixão gigantesca, Portugal torna difícil aquilo que devia ser uma experiência inspiradora.
A Experiência é Fraca Porque a Indústria Ainda Não É de Base Digital
Os setores que mais cresceram nas últimas décadas – media, retalho, aviação, entretenimento, banca - fizeram-no porque colocaram o cliente no centro, criaram experiências personalizadas e investiram profundamente em dados e tecnologia.
O futebol português, pelo contrário, ainda opera com:
- infraestruturas analógicas,
- bilhética fragmentada,
- plataformas digitais inconsistentes,
- ausência de CRM/CDP,
- pouca personalização da experiência,
- pouca integração tecnológica nos estádios e de suporte a departamentos fundamentais da operação e gestão,
- quase nenhuma recolha de dados contextuais do adepto.
E como é óbvio, se não conhecemos, não conseguimos servir o adepto.
E quando não servimos o adepto, o produto perde valor.
Estádios: A Primeira Barreira Entre a Indústria e o Adepto
Os estádios portugueses revelam grande parte do gap competitivo.
Problemas mais frequentes:
- cadeiras degradadas, bancadas desconfortáveis, sem cobertura;
- casas de banho insuficientes;
- acessos difíceis;
- fraca oferta de comida e bebida;
- pouca presença de zonas premium e hospitality;
- ausência de tecnologia (wi-fi, bilhete digital, pagamento no lugar, interação pré-durante e pós jogo);
- nenhum mecanismo de recolha e análise de dados comportamentais;
- fraca qualidade do produto televisivo.
O estádio devia ser um ativo o maior ativo comercial físico e tecnológico, e não apenas um local para “disputar jogos”.
Exemplo positivo: o FC Alverca, que investiu na melhoria estrutural e elevou experiência e produto televisivo. A prova de que é possível (e em tempo recorde).
Horários: O Sintoma Mais Claro da Falta de Dados
A marcação de jogos continua a ser feita com base em critérios que não consideram:
- padrões de mobilidade, * clima, * perfis sociodemográficos, * horários de maior propensão para compra, * distância potencial dos adeptos, * comportamento histórico de audiência.
Sem Dados, a decisão é sempre “menos boa”.
Qualquer adepto percebe isto: A probabilidade de um Chaves–Farense ao domingo às 18h00 ter boa afluência é reduzida, mas a decisão continua a ser tomada sem modelos analíticos, sem forecasting e sem segmentação.
A centralização dos direitos audiovisuais vai ajudar muito a Liga Portugal e os Clubes, mas sem dados integrados, continuaremos a gerir às cegas.
Intervenientes do Jogo: Experiência Não é Só Tecnologia, Também é Cultura
A experiência e forma de estar do adepto é moldada também por comportamentos e perceções (uma palavra muito em voga).
Dirigentes e Treinadores
A narrativa pública não contribui para a valorização do produto. Mais do que melhorar a indústria, muitas vezes degradam-na.
Jogadores
São o principal ativo emocional do adepto. É importante que aos atletas sejam incutidos valores da cultura de performance, lealdade, verdade e resiliência que faz parte dos valores fundamentais do futebol (e da vida).
Culturas futebolísticas como a inglesa ou alemã promovem fair-play, intensidade, respeito e qualidade competitiva e por isso são as mais vistas (como o Rugby).
Em Portugal, ainda há demasiada tolerância para comportamentos que empobrecem o espetáculo. Aqui entra a Justiça Desportiva e como ela é aplicada e também como o atleta se posiciona enquanto parte integrante da indústria.
Recordo as palavras de Bernardo Silva numa recente entrevista: “(...) Cais uma vez o árbitro não marca, cais a segunda o árbitro não marca, à terceira já não cais (...)” onde acrescento, se cais, levas cartão.
Árbitros
Sem tecnologia, carreira, remuneração e proteção, não há fiabilidade.
Sem fiabilidade, não há produto.
Sem produto, não há experiência.
Jornalistas e Comentadores
Num mundo de conteúdos de qualidade, a nossa narrativa continua presa ao ruído e à polémica.
O storytelling é um ativo e em Portugal está largamente desaproveitado.
Exemplo positivo: a Liga TV, que se posiciona cada vez mais num formato próximo das plataformas de streaming com conteúdos muito relevantes e como plataforma para todos os clubes.
Conclusão da 1ª Parte (E O Que Falta)
A dificuldade de ser adepto em Portugal tem causas claras (não exaustivo):
✓ infraestruturas desajustadas ✓ experiência pobre ✓ ausência de ferramentas digitais ✓ inexistência de dados ✓ modelo de decisão não orientado ao consumidor ✓ falta de estratégia de negócio integrada ✓ narrativa pouco valorizadora
Mas, como referimos no último artigo, este conjunto de fragilidades é, simultaneamente, a maior oportunidade da década.
Nunca tivemos tantas condições para transformar o futebol português:
- tecnologias acessíveis,
- plataformas modernas,
- capacidade de recolher dados,
- talento nacional,
- interesse de investidores,
- centralização dos direitos,
- dirigentes mais sensibilizados para inovação.
💥 A indústria está finalmente à beira do salto que ficou adiado durante mais de 30 anos.
E é precisamente isso que vamos explorar na próxima semana:
Como colocar o adepto no centro da estratégia através de Dados, Digital, Conteúdo e novos modelos de negócio e porque esta mudança pode transformar o valor da indústria portuguesa até 2030.